A Tomada da Reitoria

Ofereço-lhes mais um dos sempre bons artigos do professor e amigo Lurildo Saraiva. Tenho certeza que gostarão, assim como aconteceu com o último. A propósito, quem não o viu, pode acessá-lo clicando aqui

Governador BIÔNICO Nilo Coelho


A tomada da Reitoria

Em 2 de outubro de 1968 fui avisado que no dia seguinte, uma quinta-feira, iríamos falar com o Reitor Murilo Guimarães, de uma forma ou de outra. A situação difícil e precária do hospital Pedro II nos exigia uma ação radical, com provável ocupação da Reitoria. Na verdade, houve séria discussão sobre essa manifestação, os que estavam ligados ao “Partidão” foram contra, a exemplo de Carmem Chaves, mas venceu na votação a linha adotada pela Ação Popular, a qual se alinhava a liderança do DA. Nesse ano, já estava um tanto afastado da diretoria do DA, então comandado por Marcos Burle de Aguiar, mas mesmo no curso clínico, me mantinha a par dos acontecimentos, apoiava e participava da luta.

A Reitoria da UFPE ocupava prédio situado em frente à Sétima Região Militar, atual representação do Ministério da Educação, nas cercanias do IV Exército: local inapropriado para qualquer manifestação estudantil, no ano em que, como forças antípodas, o governo militar e o movimento estudantil, orientado pela UNE, estavam cada vez mais radicais em suas posições. Numa atitude que me seria depois muito útil – álibi usado na minha defesa do decreto-lei 477 – pedi ao colega Roberto Guimarães que assinasse a minha presença em aula de Obstetrícia, que ocorreria na tarde do dia programado.




Na quinta feira nos dirigimos em grupos para a sede da Reitoria, onde pouco a pouco chegamos, e literalmente invadimos o gabinete do Professor Murilo, que se encontrava presidindo reunião administrativa. O diálogo que ele manteve com os líderes Marcos Burle, Luciano Siqueira, Humberto Câmara Neto e Alírio Guerra foi áspero, rude, as coisas pareciam tomar curso imprevisível: subitamente, levanta-se e tenta sair da sala, no que foi impedido, sendo-lhe comunicado que estava detido, até que resolvesse o problema do Hospital das Clínicas. Ele sentou-se pálido e enraivecido: o Chefe de Gabinete avisa que aquela era coisa gravíssima e iria comunicar às autoridades policiais a prisão do Reitor.

Estávamos às 10 horas da manhã. Humberto propõe em discurso emocionado – sempre a segurar o aro direito dos seus óculos, como lhe era característico – a realização de assembléia na presença de autoridades universitárias: lembrou que o Reitor era o representante maior da ditadura na UFPE, e se era assim, poderia falar diretamente com o Ministro da Educação e exigir a liberação de verbas para o velho HC.

 (Naquele instante, pensei que alguma coisa estava errada, nós lutávamos por liberdade e éramos contra “prisões”, o acirramento da luta poderia nos fazia perder o sentido maior que era o de opor-se à ditadura: até onde iríamos?). 

A assembléia corria, alternando- se vários colegas, mas sempre acordando em impedir a saída do Reitor do recinto, e manter posições.

Hora do almoço. O Professor Murilo se recusa a alimentar-se, inclusive ingerir um copo de leite que lhe foi sugerido: correu o boato de que ele tinha úlcera péptica, então tratada com dieta láctea, fundamentalmente. O telefone toca sem parar: soubemos que telefonaram ao gabinete do Reitor o Governador biônico Nilo Coelho e o Comandante do IV Exército. A coisa estava ficando preta: houve indicação de que a Reitoria seria invadida pela Polícia Militar, muito embora fosse Instituição Federal.

Às 15 horas, o Exército cerca o prédio. O medo aumenta. A liderança exige a presença do Governador. O Coronel comandante do destacamento avisa que iria “bombardear” o prédio: seria verdadeira essa loucura? 

Chega o Governador e se reúne com os líderes: ele exige a desocupação do prédio, mas a decisão está estabelecida: só sairíamos se houvesse compromisso das autoridades com a liberação de verbas para o HC. O Dr. Nilo assume a causa, afirma que falará com o ministro Jarbas Passarinho, comprometendo-se a impedir prisões de estudantes na saída da Reitoria. A decisão foi levada à nova assembléia, que decide sair – a esta altura, 16 horas ou mais, estávamos todos fatigados, com fome, sob enorme estresse – do gabinete víamos os soldados do Exército com ninhos de metralhadora e viaturas da RP em profusão… 

Em cena a lembrar personagens fellinianos, o Governador, que era muito gordo, ficou no portão do prédio, dando “proteção”. Eu e outros desconfiamos daquilo tudo: os governadores biônicos eram figurantes, em nada mandavam em questões de caráter político na estrutura policial que comandava o país na gestão Costa e Silva.
Eu sabia que Dona Eunice Robalinho, mãe do Professor Guilherme Robalinho, que nos apoiava abertamente na Medicina, morava em apartamento térreo contíguo, e imaginei saltar o muro alto que separava os dois prédios. Avisei aos colegas, e de fato os que optaram em sair pelo portão, entre eles Josélia Maria e Heli Leonardo de Castro, entraram em fria: foram todos presos por agentes do DOPS nas ruas adjacentes e levados à Secretaria de Segurança para o fichamento habitual, se já não o fossem; eu e outros saltamos o muro alto: como conseguimos saltar, não imagino, o medo nos torna mais altos, parece. Como esperado, Dona Eunice nos protegeu na sua casa, e pediu à Marina, sua governanta, que nos alimentasse. Eram aproximadamente 17:30 horas, mas só saímos do seu apartamento após a retirada de todo o arsenal repressivo das ruas.

Na sexta-feira, houve assembléia estudantil no auditório central da Faculdade, na presença do Governador. Colegas de outras unidades da UFPE compareceram, e emprestando apoio moral, o Padre Henrique. A assembléia foi tumultuada – não faltaram vaias contra Nilo Coelho, obrigado a soltar os colegas que ainda permaneciam presos -, mas complementava a vitória que havíamos obtido no dia anterior.

Seria a “tomada da Reitoria” – assim ficou chamada essa manifestação estudantil – uma vitória de Pirro? Talvez, ela estaria baseando muitas das acusações que o Comandante do IV Exército, General Alfredo Malan, dirigiu à Faculdade de Medicina, instruindo as cassações de estudantes fundamentadas no temível AI5, no ano seguinte. Naquele momento, entretanto, tal dúvida não estava em nossos espíritos, a resistência estudantil à opressão agia assim.

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