Como já expliquei na postagem anterior, segue um episódio relatado pelo grande mestre e amigo, Prof. Lurildo Saraiva. Seus episódios são na verdade relatos de uma tenebrosa época para o nosso país: a época da ditadura militar. Muitas são as duras lembranças. Mas são fundamentais para que não esqueçamos desta época. É isso o que quer a classe dominante. Que passemos uma borracha em tudo como se nada tivesse acontecido. E isso não podemos aceitar. Os textos de Lurildo nos dão força para que tudo não caia na vala comum do esquecimento.

Espero e dou força para que o conjunto de episódios saia em livro.

O galego Alírio Guerra

Mais parecia um encontro de “exilados” nordestinos aquela feijoada em um domingo do verão paulistano, ocorrida numa bonita residência, no Alto do Sumaré (ou Pacaembu?), em área rica na vegetação escassa de São Paulo, no ano de 1972. Eu e a Jandira fomos convidados por Francisca Guerra, médica residente em Psiquiatria no Hospital das Clínicas, muito amiga nossa. Entre tantos conterrâneos, lá estavam Alírio Guerra e sua companheira Eveline de Souza, filha de Newton de Souza, Professor de Cardiologia em Recife, homem de grande dignidade, reconhecidamente comunista.

Alírio foi um dos poucos estudantes de Medicina da UFPE cassados pelo Decreto-Lei 477, no alvorecer da ditadura Médici, em 1969. Fugira do Ceará, perseguido pela repressão, militante da luta clandestina contra a tirania nos anos de chumbo, penso que membro do PC do B, após atuar na Ação Popular. Galego de olhos claros, mais parecia um alemão, nunca aquele piauiense corajoso que era. Homem de poucas palavras e de muita ação, era leal como poucos.

Após abraços efusivos, sobretudo em Eveline, de quem era mais próximo, pela ligação afetiva forte que eu mantinha com o seu pai, com quem pesquisara o ECG em universitários hígidos por teste ergométrico, ao saber que me encontrava estagiando no HC, contou-me o problema de saúde sério que o galego vivia. Havia indícios por tosse persistente que lhe voltara processo tuberculoso, existente anos antes no pulmão: necessitava realizar pesquisa do bacilo de Koch no escarro com certa urgência, mas havia natural limitação, pois estava sem documentos oficiais, em plena clandestinidade – o seu nome não poderia aparecer -, além das dificuldades econômicas. Ali mesmo comecei a matutar um modo de ajudá-lo, que teria de ser sorrateiro, escondido, necessariamente, no Laboratório Central do HC.

Voltamos os cinco, eu, Jandira, Alírio, Eveline e Francisca, em um fusca dirigido por amiga da Cizinha. Na descida do Sumaré, uma viatura policial que perseguia um grupo de jovens em carro com alta velocidade, por imprudência da nossa condutora, que reclamou dos jovens aos soldados, subitamente mudou de percurso e passou a nos seguir: uma corrente de medo nos chegou, pois a ausência de identidade do casal implicaria em detenção do Alírio, sobretudo, com as terríveis consequências que lhe viriam. Os policiais interceptaram o carro, e para azar de todo mundo, a amiga motorista não trouxera consigo a documentação de propriedade do veículo: ela explicou ao cabo que os cinco éramos médicos (!), e deveríamos assumir plantão dali a poucas horas no HC. Não atino por quais motivos o policial não pediu a identidade dos demais ocupantes, pelo contrário, quis seguir o carro até Higienópolis, onde a proprietária residia. Muito tensos, descemos na Avenida Dr. Arnaldo em frente à Faculdade de Medicina, sem problemas maiores.

Combinei com Alírio que na terça feira nos encontraríamos em frente ao atual IML, na Rua Teodoro Sampaio: deveria conseguir o recipiente para a colheita do escarro na segunda, esta etapa não seria difícil, pois dispúnhamos dos tubos apropriados na enfermaria de Cardiologia Pediátrica, onde estagiava naquele mês: mas, como eu faria? Precisamente naquela semana cuidava de um paciente de 17 anos, do interior de SP, recém operado, que, como é o habitual, tinha tosse produtiva, e a única maneira que vislumbrei foi a de trocar o material do doente pelo esputo do Alírio, que eu deveria receber na quarta feira, no mesmo local. Na minha juventude, ansioso em ajudar o companheiro, não percebi ser inabitual e estranho um médico pedir pesquisa de BK em pós-operatório de cirurgia do coração… Se nisto não pensei, pensou direitinho a supervisora de Enfermagem, uma senhora elegante, amazonense, braba, e que ainda por cima descobriu o tubo de ensaio quebrado que eu jogara no lixo do banheiro dos doentes, com o escarro do meu enfermo JBS. Entrei numa pior, a mulher a me cobrir de perguntas, eram perceptíveis o meu tremor e a minha insegurança: sem titubear, afirmou que coisa muito esquisita havia sido praticada, ameaçando-me comunicar ao Professor Décourt e abrir processo administrativo, o que representaria, talvez, a minha expulsão sumária do estágio, naquela atmosfera direitista que impregnava o ambiente hospitalar em tempos tão difíceis: a enfermeira mais parecia um agente do SNI!

Arrisquei e menti: disse-lhe que pedi o exame autorizado por Antônio Gouvêa, meu supervisor de estágio, que eu sabia confiável porque de esquerda (já conversáramos bastante sobre política), e bem antes dela, falei eu com o ele sobre o qüiproquó. O meu supervisor não teve dúvidas: assumiu a responsabilidade, afirmando que autorizara a realização do exame, pois o enfermo tinha antecedentes epidemiológicos de tuberculose e sua tosse não melhorava, e apenas por descuido, havia sido quebrado o tubo coletor… Se a mulher engoliu, até hoje não sei: o fato é que daí, então, passei a ter meus prontuários esmiuçados com todo o rigor pela amazonense zangada. O que também não pensei é que o exame do Alírio, com o nome do meu doente, poderia ser positivo, o que ensejaria uma imensa confusão, não foi, graças ao bom Deus. Uma semana depois comuniquei ao galego o resultado negativo, e lhe trouxe alegria na vida difícil que certamente tinha, com um sério problema a menos.

Mais de 30 anos depois, percebo a loucura e a gravidade do que cometi, e somente agora tive coragem de narrar esta ocorrência. Eram tempos ilegais, e na ilegalidade só podíamos agir assim: repetido esse período nefasto da nossa História, não tenho a menor dúvida que tudo faria de novo, é da minha índole não aceitar qualquer forma de autoritarismo. Alírio Guerra de Macedo morreria de desastre automobilístico em plena campanha eleitoral, candidato a Senador pelo PC do B, salvo engano, em Sergipe, em 1986; a Eveline foi eleita vice-Prefeita da cidade de Aracaju. Neste instante lembro-me perfeitamente do seu semblante, quando da invasão e tomada da Reitoria, que fizéramos em outubro de 68, dois meses antes da promulgação do AI: dada a sua coerência, estaria muito incomodado com a adesão atual ao neoliberalismo por parte de alguns partidos de esquerda brasileiros.

Não mais o revi. Por ocasião da enfermidade que ceifou a vida do Prof. Newton tive oportunidade de conhecer o seu filho mais velho, que, de olhos úmidos, ouviu-me este relato, aqui em Recife. O moço, de grande sensibilidade, estudava Filosofia e Teatro em Sergipe, há cerca de oito anos.

4 comentários

  1. Ari, que leitura agradável. É um daqueles textos que não dão vontade de parar! Parabéns ao Prof. Lurildo Saraiva pela boa ecrita.

  2. Só uma correção……Alirio era candidato a Dep Etadual pelo PC do B….no RN….e Evelinne foi vice Prefeita eleita em Natal…..em 1988

  3. Muito bom o texto sobre Alirio e o blog Propalando. Sou de Curimatá, cidade de Alírio, uma das maiores liderança da esquerda nascido no Piauí. Partiu para a eternidade muito jovem.
    prof.erasmo.rocha.zip.net
    Prof Erasmo
    Salto – SP

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